quinta-feira, 30 de julho de 2020

Cardo, uma cultura de futuro que alia tradição e sustentabilidade com inovação e criatividade



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O cardo é hoje uma planta que está a ser estudada por várias instituições de ensino superior e centros de investigação, de um modo complementar e sinérgico, nos mais diversos domínios da valorização dos diferentes tipos de biomassa. Destacam-se os Institutos Politécnicos de Viseu, Beja e Bragança, as Universidades de Coimbra, Aveiro, Porto e Católica, centros de investigação como o CEBAL, BIOCANT, CATAA, INIAV, entre outros. Para além de instituições científicas de referência, temos tido o cuidado em incorporar empresas de vária índole, incluindo queijarias nas diversas denominações de origem designadamente Serra da Estrela, Serpa, Castelo Branco e Azeitão, e empresas líderes na valorização de biomassa lenho-celulósica e de outras formas de biomassa. Temos ainda associada uma importante componente social com a inclusão da APPACDM-Viseu e do Estabelecimento prisional de Viseu como parceiros privilegiados deste projeto e onde temos hoje instalados campos de cardo de referência.

O conhecimento sobre a biodiversidade e extensão dos recursos genéticos, do cardo (Cynara cardunculus L.), é de crucial importância para o sucesso da sua conservação, melhoramento e consequente valorização nas mais variadas vertentes desde a conservação e preservação ambiental e paisagística, valorização agroalimentar, biocidas e proteção de plantas, farmacêutica, cosmética, nutrição saúde e bem-estar. Pela diversidade taxonómica registada neste género consideramos ser de extrema importância estimar, igualmente, a diversidade bioquímica ao nível das proteases aspárticas (cardosinas), não apenas para esclarecimento de eventuais questões de filogenia e das reais funções destas proteínas, especialmente nas flores, mas igualmente como um potencial para futuros desenvolvimentos biotecnológicos nas mais variadas indústrias com base nas funcionalidades específicas deste grupo de enzimas.

Os conhecimentos da morfologia da espécie, da anatomia e histologia são determinantes para a avaliação do seu potencial de valorização. Contudo, a extensão da biodiversidade intraespecífica pode ainda perspetivar uma oportunidade de seleção e melhoramento de acordo com a multiplicidade de aplicações e vocações que se perspetiva que possa vir a desempenhar num futuro próximo. A morfologia é igualmente fundamental porque, em conjunto com a fisiologia da planta, determinam a arquitetura e a estratégia que esta estabelece para enfrentar os mais variados tipos de stresse e consequentemente a quantidade e a qualidade da produção das mais diversas matérias-primas, onde, neste caso, a flor assume um papel crucial.

Conhecer a distribuição natural da espécie em Portugal e no Mundo é de extrema importância para podermos inventariar os locais de maior diversidade da espécie e caracterizá-la para eventuais aplicações futuras com retorno de potencial económico para essas regiões ou simplesmente para preservação da sua biodiversidade. No caso concreto do cardo, em Portugal temos, para além da distribuição natural, uma distribuição subespontânea ou cultivada em algumas regiões pela aplicação privilegiada das suas flores na preparação de extratos para coagulação de leite na produção de queijos DOP. O caso da região de Denominação de Origem do Queijo Serra da Estrela, a par de outras, é um exemplo no qual acreditamos que o seu cultivo deva ser intensificado, especialmente em terrenos com menor aptidão agrícola pela rusticidade da espécie e de um modo sustentável, conferindo ainda maiores especificidades e sustentabilidade às regiões de denominação de origem protegida. Esse cultivo deve ser realizado com manutenção de alguma biodiversidade e com base em material vegetal devidamente selecionado e caracterizado sob ponto de vista de produção de biomassa, composição dos compostos bioativos e qualidade bioquímica da flor. Como resultado da aplicação primordial da flor devemos ter em conta na seleção do material vegetal características que, para além do aspeto produtivo, facilitem o procedimento de colheita como a ausência de espinhos e a arquitetura da planta adaptada a uma possibilidade futura de mecanização, na qual temos vindo a trabalhar.

A espécie C. cardunculus tem a particularidade de ter sofrido dois processos de domesticação com objetivos distintos que conduziram ao estabelecimento da alcachofra (C. cardunculus var. scolymus) mais vocacionada para a produção de capítulos para serem consumidos em fresco e do cardo cultivado (C. cardunculus var altilis) com o objetivo de produção de biomassa. Na base destes processos de domesticação está o cardo silvestre (C. cardunculus var. sylvestris) que se mantém, concomitantemente com as espécies cultivadas, e que naturalmente tem sofrido a sua própria evolução. Apesar da extensa utilização das flores de cardo como coalho vegetal, desde tempos remotos, nunca foi desenvolvido até esta altura um qualquer processo de seleção e melhoramento que tivesse como objetivo uma atenção especial em relação produção de flor e respetivas características bioquímicas que se traduzam na valorização no queijo.

Neste sentido, uma biodiversidade morfológica baseada no cardo cultivado, cujos exemplares revelam uma aptidão particular para a produção de capítulos e flores e uma arquitetura da planta que facilite a recolha das flores deverá ser complementada com a caracterização bioquímica das flores. Neste sentido, estamos a desenvolver uma terceira via de domesticação cuja seleção envolva plantas com uma arquitetura que permita o acesso direto facilitado aos capítulos, sem espinhos, com poucos caules e um elevado número de inflorescências por caule, fruto de um elevado número de ramificações que começam muito perto do nível do solo. O objetivo será encontrarmos plantas com boas características morfológicas e perfis bioquímicos distintos para podermos garantir a preservação desse material genético, através de propagação vegetativa ou cultura in vitro e que proporcionem uma rentabilidade interessante para a produção. A propagação via seminal deve ser monitorizada para percebermos a forma como os perfis bioquímicos se comportam nessa descendência e avaliarmos se há uns perfis mais constantes comparativamente com outros.

Um outro aspeto de grande relevância está relacionado com a manutenção dos perfis bioquímicos nos mesmos genótipos ao longo do período de colheita, nos vários estádios de ontogenia da flor e ao longo dos vários anos, garantindo uma padronização ao nível da flor e consequentemente ao nível das qualidades do queijo no que ao agente coagulante se refere.

O cardo, fruto da sua rusticidade e capacidade de adaptação a climas secas e a solos pobres e pela tendência que vimos assistindo nas alterações climáticas, assume-se como uma cultura interessante para áreas secas e com elevados teores de salinização comuns na orla mediterrânica. Nestas condições particulares trata-se de uma cultura para obtenção de biomassa com uma aplicação extraordinariamente interessante e valorizada na indústria de aglomerados, com características muito particulares, mas que pode proporcionar outros recursos como compostos bioativos para a indústria farmacêutica ou aquénios cujo óleo possui qualidade alimentar, ou ter uma vocação de sustentabilidade energética e ambiental na produção de plásticos biodegradáveis ou na indústria cosmética saboneteira. A raiz produz ainda a inulina um composto polissacarídeo com uma vasta aplicação na indústria química e alimentar.

Por questões culturais o cardo não é uma cultura cujo consumo alimentar tenha uma expressão significativa em Portugal, embora por via deste projeto desejamos promover essa vocação. Atualmente existe um significativo número de cultivares de cardo e alcachofra com as mais variadas características que respondem às tendências dos mercados e dos consumidores para consumir os capítulos e pecíolos em fresco ou de forma processada muito em busca da valorização nutricional e de compostos nutracêuticos promotores de saúde. É nossa intenção procurar, no cardo, estabelecer um compromisso que vise a valorização integrada e sinérgica de um conjunto de fatores que aqui abordamos, devidamente adaptado à realidade de cada região e com um acentuado pendor na criatividade, inovação e sustentabilidade. Não foi com surpresa que assistimos ao uso pelo Eng. Carlos Moedas do cardo no lançamento do programa europeu de inovação de bioeconomia, na sede da Comunidade Europeia, como exemplo de potencial no futuro. Considero ser esta uma oportunidade de ouro para juntarmos estas diversas vocações e saberes extraordinariamente complementares e sinérgicas para constituirmos um grupo ímpar e mostramos como é possível a partir de uma simples planta constituir uma fileira que vai desde a produção agrícola, até à valorização das mais diversas formas de biomassa. A extensa maioria dos projetos relacionados com o cardo, têm-se centrado até hoje, por razões óbvias na flor. Julgo que é o momento de unirmos esforços para conseguirmos a real valorização do todo sinérgico em detrimento dos elementos isolados. Queria deixar um grande bem-haja e um agradecimento público a todos aqueles que, nas mais variadas instituições, tem ajudado a reconhecer o cardo como uma cultura adaptada aos desafios de futuro.

 


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