quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Sobre a Natureza das Coisas...


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"Começo a dar-me conta: a mão

que escreve os versos

envelheceu. Deixou de amar as areias

das dunas, as tardes de chuva

miúda, o orvalho matinal

dos cardos. Prefere agora as sílabas

da sua aflição.



Eugénio de Andrade, Os trabalhos da mão (in Ofício de Paciência)



Embora cantados por alguns poetas, os cardos são considerados erva daninha em Portugal. As plantas a que chamamos cardos pertencem, na sua maioria, à tribo Cardueae ou Cynareae cujas características distintivas são os espinhos e a ausência de flores liguladas, substituídas por flores tubulosas. Nem todos os cardos pertencem à mesma família, por exemplo o cardo marítimo recordado por Eugénio de Andrade é uma umbelífera.


Embora em Portugal o cardo espinhoso não mereça grande consideração, na Escócia é tido em tão alta estima que figura no respectivo emblema nacional. As razões de tal escolha peculiar estão encobertas pelas brumas do folclore, mas rezam as lendas que, algures há uns largos séculos e em lugares diversos consoante a versão, os habitantes de uma dada aldeia ou de um certo castelo foram salvos de um massacre pelos gritos de invasores viking que pisaram cardos depois de imprudentemente se descalçarem para melhor surpreender os adormecidos escoceses.

É certo no entanto que desde 1470 o cardo é utilizado como emblema real na Escócia, introduzido pelo rei James III que criou nesse mesmo ano a condecoração honorífica que continua a mais alta da Escócia, a Ordem do Cardo, ou antes, The Most Ancient and Most Noble Order of the Thistle.

A insignia da Ordem tem inscrito o motto nacional escocês, Nemo me impune lacessit, (Ninguém me provoca impunemente), motto muito semelhante ao da cidade de Nancy, Non Inultus Premor, (Ninguém me toca com impunidade), que tem igualmente o cardo como símbolo.


Non Inultus Premor foi também o título de um ensaio com que um jovem Henri Poincaré concorreu em 1880 a um prémio da Academia de Ciências francesa que versava sobre equações diferenciais (e que está envolvido numa controvérsia sobre a paternidade das transformadas de Laplace).

 
Mas se o cardo não está associado a lendas tão galantes como na Escócia, entre nós - para além de nos recordar leite cru de ovelha Bordaleira Serra da Estrela coalhado com o cardo Cynara cardunculus - fez parte do léxico do imaginário popular como repelente de bruxas e arma de protecção contra demónios, mau-olhado e doenças. Em relação a esta última utilização não somos muito originais, já que desde que o historiador grego Heródoto (484-426 a.C.), o Pai da História, o menciona nos seus escritos, as virtudes curativas de cardos sortidos têm sido louvadas nas páginas das enciclopédias médicas da época respectiva.


Os cardos foram ( e continuam a ser) abundantemente utilizados ao longo da História na farmacopeia popular, especialmente o cardo-mariano (Silybum marianum), o cardo do visco (Atractylis gummifera) e o cardo-santo (Cnicus benedictus). Mas será que os seus méritos curativos são algo mais que outra lenda?

 
Não há muitas dúvidas de que não passam de lendas as virtudes atribuídas ao cardo-santo, o cardo de S. Bento que na Idade Média era visto como outro candidato santificado a panaceia universal - e talvez para evitar guerras santas no panteão católico era utilizado com a angélica na preparação do licor, conhecido hoje em dia como Benedictine, que supostamente seria um elixir contra a peste negra.

Hoje em dia continua a atribuir-se ao cardo bento capacidades curativas extraordinárias, do cancro à estimulação da lactação, e este é vendido como suplemento alimentar em inúmeros locais da internet. Mas não se reconhecem grandes virtudes à cnicina, a lactona sesquiterpénica que lhe confere o (extremo) amargor, tirando as suas excelentes qualidades de pesticida. É igualmente um emético bastante potente em doses elevadas. Sabe-se que a dose letal em ratos se situa entre 0.6-1.3 g/kg pelo que embora os suplementos alimentares apenas indiquem a quantidade do cardo que contêm mas não a concentração de cnicina ( que se vai degradando), não me parece provável que seja perigosa a sua utilização a quem não seja alérgico a sesquiterpenos - apenas demasiado amarga e francamente mais onerosa que um qualquer chá muito mais agradável ao palato.

Mas a história é completamente diferente no que respeita ao cardo do visco. Como todos os membros do género Atractylis - de que existe em Portugal também o cardo-coroado (Atractylis cancellata) - contém atractilosídeo e seus derivados que inibem a translocase de nucleotídeo de adenina, uma proteína mitocondrial envolvida na produção do «combustível» celular e são assim extraordinariamente hepatotóxicos. Não obstante a sua elevadissima toxicidade - e os casos fatais de envenenamento que infelizmente ocorrem com alguma frequência-, o cardo Atractylis gummifera continua a figurar em alguma farmacopeia popular como remédio para uma série de maleitas.

Este cardo faz assim parte de uma longa lista de plantas utilizadas em mezinhas caseiras ou suplementos alimentares - alguns deles, como a cascara sagrada, muito utilizados para eliminar «resíduos», tal como a depuralina -, que podem causar danos, em alguns casos fatais, ao fígado dos seus consumidores. Vale a pena ler um artigo de revisão sobre o tema, «Herbal hepatotoxicity», publicado em Novembro de 2005 na revista Journal of Hepatology.

Mas se o cardo do visco contém compostos que são comprovadamente hepatotóxicos, o único cardo dos três que comprova parte do imaginário que o rodeia, o cardo mariano, funciona como um hepatoprotector, ou antes, alguns polifenóis que contém, os flavonóides silibinina, isosilibinina ou silicristina e silidianina, agem como estabilizadores das membranas dos hepatócitos, protegendo a célula hepática da influência nociva de substâncias tóxicas endógenas e/ou exógenas. A silimarina, o extracto do cardo que contém os três isómeros, é comercializada como Legalon sendo utilizada como coadjuvante no tratamento de doenças hepáticas crónicas, de lesões hepatotóxicas e ainda para tratar intoxicações pelo cogumelo Amanita phalloides.

Desde os primórdios da humanidade que o homem utilizou as plantas para fins terapêuticos. Há certamente muitas plantas que contêm compostos com inúmeros efeitos benéficos - e já tenho referido uma série delas. E existirão certamente muitas mais cujo potencial terapêutico não foi ainda descoberto. Mas como estes cardos exemplificam, há igualmente muitas plantas que contam na sua composição compostos tóxicos ou muito tóxicos, incluindo plantas que durante milénios constaram das farmacopeias tradicionais.

O valor (des)educativo da publicidade explica que tudo o que é produto «natural» possa ser vendido com descrições delirantes sobre as suas inúmeras e/ou impossíveis benesses (lembro-me de ter rido dos até 20 kg de «resíduos» que supostamente acumulamos e que alguém apresentado com «galões» de argumento de autoridade asseverava aos microfones de uma rádio a Depuralina nos ir livrar). E que sejam publicitados como não tendo «químicos» e por isso sem quaisquer efeitos secundários. Tudo e todos não passamos de químicos e a toxicidade de uma molécula não depende da forma como ela é obtida ou publicitada.

De facto, as diferenças mais substanciais entre produtos naturais, como a depuralina ou os cardos, e medicamentos de síntese são os factos de os primeiros serem de venda livre e não estarem sujeitos a qualquer teste clínico ou controle e de nas embalagens dos últimos serem indicados efeitos secundários, contra-indicações, dosagem (e composição química) - o que é uma incógnita por vezes muito perigosa em alguns dos ditos produtos naturais.

Há uns meses perguntava-me porque razão se mantinham impertubadas e impertubáveis por regulamentação ou testes as «medicinas» alternativas, tradicionais ou não, a que acrescento os ditos suplementos alimentares. O caso recente da depuralina serviu pelo menos para recordar que nem tudo o que é natural é bom e que todas as substâncias destinadas a consumo humano devem ser investigadas e testadas, independentemente do rótulo natural ou do prefixo bio no nome."


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