http://gazetarural.com/2019/09/17/gazeta-rural-n-o-347-15-setembro-2019/
A
Agricultura Famíliar assume-se de vital importância pelo número de explorações que
representa e pelo volume de produtos agrícolas que garantem alimento para uma
parte significativa da população. A agricultura familiar pode responder aos
desafios que se colocam a uma sociedade tendencialmente globalizante mas que se
quer sustentável, criando laços de proximidade e de confiança entre produtores
e consumidores, fruto da qualidade e afetividade que conferem uma identidade a
esta forma inclusiva de agricultura. Num tempo em que se vaticina que o futuro
assenta em megametrópoles contra todos os indicadores de racionabilidade e
razoabilidade, temos a clara sensação que pela frente nos espera uma tarefa
hercúlea ao jeito de “um David contra Golias”, na qual um sistema de produção
desta natureza parecia estar condenado ao fracasso, se não existirem diretivas
e incentivos que promovam esta atividade. Mas pode ser que o próprio evoluir
das sociedades conduza naturalmente esta prática ao sucesso na devida proporção
para cada uma das realidades quer em termos de dimensão demográfica quer pela
localização geográfica. A recente publicação do estatuto de Agricultura
Familiar e a tendência em incentivar a produção e o consumo apelidado de “quilómetro
zero”, mesmo pelas cadeias retalhistas, são um sinal que apontam numa visão de
estratégias de futuro que privilegiem a proximidade física e afetiva limitando
o uso de recursos despendidos em transporte. Estamos hoje perante uma realidade
invertida na qual parece dar-se mais importância ao transporte comparativamente
com a produção e por isso surgem estas convulsões sociais na qual aqueles que
fazem do transporte o seu modo de vida pensarem poder ditar as suas regras. São
estes exemplos que nos fazem acreditar ainda mais nos serviços e práticas em
proximidade como tendência de futuro. Existe atualmente a convicção que os
consumidores podem condicionar a produção, não apenas na variedade de produtos
mas também na qualidade dos mesmos e até nas forma como são embalados. Esta
relação tem que ser levada a cabo com base numa relação exigente ditada pelo
conhecimento sedimentado e não por um simples fluir de modas, na qual a
ancestralidade dos recursos genéticos e dos métodos empíricos de práticas
agrícolas se devem harmonizar com o conhecimento técnico-científico e a
inovação assentes na racionalidade e sustentabilidade. Por falar em valorização
de recursos genéticos, recordo-me do melão de Vila Soeiro que se cultiva(va) na
freguesia com o mesmo nome da região de Fornos de Algodres e que não se pode
deixar perder para memória futura na criação de identidades que nos distingam
da massificação e ajudem os pequenos produtores a terem nichos de mercado
baseados na ativação de neurónios relacionados
com o prazer dos sabores, das fragâncias, da convivialidade e dos
saberes. Esta como outras variedades de iguarias agrícolas, nas quais estes
territórios ditos de interior são extraordinariamente ricos, deveriam ser
preservados, estudados e alvo de melhoramento em projetos regionais que deveriam
envolver produtores, autarquias, centros de investigação, instituições de
ensino superior e o ministério da agricultura.
O uso da
designação familiar acarreta em si uma responsabilidade acrescida pela força da
palavra e todo o simbolismo que representa nos laços de confiança que permite
criar. Mas para esta concretização há que creditar tecnicamente os seus
produtores, conferindo capacidade e responsabilidade ao ato de produzir e desta
forma, as relações de confiança e afetividade que podem fazer a diferença
surgirão naturalmente. Têm que ser criados instrumentos de rastreabilidade e
monitorização das atividades e práticas agrícolas que se vão implementando ao
longo dos ciclos de produção. A estratégia de adoção das práticas da
agricultura biológica, assente em princípios de equilíbrio e sustentabilidade
do solo, das culturas, adequadas às épocas do ano e tendo por base uma comercialização
em proximidade com redução da pegada do carbono, parece ser o melhor caminho
para guindar este tipo de cultura ao sucesso que merece. Obviamente que todo
este investimento tem que se traduzir na qualidade dos seus produtos não por
calibres ou padronizações mas por sabores únicos que nos façam recuar às
memórias de infância. As práticas agrícolas são uma das áreas onde mais se tem
que apostar aliando o conhecimento empírico no combate às pragas e doenças às
estratégias mais inovadoras creditadas cientificamente. O uso de fungicidas e
bactericidas, de base natural, para a utilização em culturas agrícolas deve
assumir-se como uma das grandes mais-valias de futuro, não numa lógica de
“mezinha” mas em combinar de uma forma sinérgica as virtudes das plantas para a
preservação do ecossistema com claro benefício para a saúde dos consumidores e
dos nossos vindouros.
Nós como
consumidores também temos a responsabilidade de procurarmos incentivar as
relações de confiança com aqueles produtores de agricultura familiar que
consideramos cumprirem os requisitos de qualidade, sustentabilidade,
afetividade e proximidade. Sabermos ser exigentes mas dando tempo para que as
relações de confiança se desenvolvam e maturem naturalmente. Se por um lado
somos animais de hábitos e gostamos de comodidade, também nos cansamos cada vez
mais depressa das rotinas e isso por vezes não facilita o estabelecimento de
relações duradoiras, especialmente de índole afetiva. Aqui entram os prazeres
proporcionados pela diversidade das iguarias que de acordo com a sazonalidade
nos vão chegando pela mão daqueles em quem depositamos a confiança de alimentarem
a nossa família. No meu caso a exigência é redobrada porque as minhas duas
filhas são ambas nutricionistas e os Pais partilham o menu. Temos o privilégio
da nossa agricultora familiar nos ir surpreendendo logo desde princípio com a
chegada do cabaz semanal com uma composição de cores, formas e texturas dignas
de um(a) pintor(a) naturalista à qual se aliam as inebriantes fragrâncias das
ervas aromáticas que compõem o buquê. Havendo uma base comum estamos sempre
ansiosos, semana após semana, em saber qual a fruta ou o legume que surge de
novo porque estamos na sua época de eleição e não precisamos pedir porque ela
já nos conhece os hábitos, mas acima de tudo sabe os trunfos que tem para nos
surpreender todas as semanas ao longo do ano agrícola. Isto para além da
confiança e laços de amizade que já damos por adquiridos mas que foram os
promotores de toda esta partilha e convivência. Curioso é ser agora que estamos
de férias, período em que escrevo estas linhas despretensiosas, mais sentimos a
falta dos primores provindos da nossa Agricultora Familiar. Faço votos que este
artigo possa ser o mote para que cada um encontre a sua alma gémea no seio da
Agricultura familiar.
Bem-haja!
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