terça-feira, 17 de setembro de 2019

CULTIVAR LAÇOS DE CONFIANÇA E AFECTIVIDADE NO SEIO DE UMA AGRICULTURA FAMILIAR QUE SE QUER DE CARIZ BIOLÓGICO


http://gazetarural.com/2019/09/17/gazeta-rural-n-o-347-15-setembro-2019/

A Agricultura Famíliar assume-se de vital importância pelo número de explorações que representa e pelo volume de produtos agrícolas que garantem alimento para uma parte significativa da população. A agricultura familiar pode responder aos desafios que se colocam a uma sociedade tendencialmente globalizante mas que se quer sustentável, criando laços de proximidade e de confiança entre produtores e consumidores, fruto da qualidade e afetividade que conferem uma identidade a esta forma inclusiva de agricultura. Num tempo em que se vaticina que o futuro assenta em megametrópoles contra todos os indicadores de racionabilidade e razoabilidade, temos a clara sensação que pela frente nos espera uma tarefa hercúlea ao jeito de “um David contra Golias”, na qual um sistema de produção desta natureza parecia estar condenado ao fracasso, se não existirem diretivas e incentivos que promovam esta atividade. Mas pode ser que o próprio evoluir das sociedades conduza naturalmente esta prática ao sucesso na devida proporção para cada uma das realidades quer em termos de dimensão demográfica quer pela localização geográfica. A recente publicação do estatuto de Agricultura Familiar e a tendência em incentivar a produção e o consumo apelidado de “quilómetro zero”, mesmo pelas cadeias retalhistas, são um sinal que apontam numa visão de estratégias de futuro que privilegiem a proximidade física e afetiva limitando o uso de recursos despendidos em transporte. Estamos hoje perante uma realidade invertida na qual parece dar-se mais importância ao transporte comparativamente com a produção e por isso surgem estas convulsões sociais na qual aqueles que fazem do transporte o seu modo de vida pensarem poder ditar as suas regras. São estes exemplos que nos fazem acreditar ainda mais nos serviços e práticas em proximidade como tendência de futuro. Existe atualmente a convicção que os consumidores podem condicionar a produção, não apenas na variedade de produtos mas também na qualidade dos mesmos e até nas forma como são embalados. Esta relação tem que ser levada a cabo com base numa relação exigente ditada pelo conhecimento sedimentado e não por um simples fluir de modas, na qual a ancestralidade dos recursos genéticos e dos métodos empíricos de práticas agrícolas se devem harmonizar com o conhecimento técnico-científico e a inovação assentes na racionalidade e sustentabilidade. Por falar em valorização de recursos genéticos, recordo-me do melão de Vila Soeiro que se cultiva(va) na freguesia com o mesmo nome da região de Fornos de Algodres e que não se pode deixar perder para memória futura na criação de identidades que nos distingam da massificação e ajudem os pequenos produtores a terem nichos de mercado baseados na ativação de neurónios relacionados  com o prazer dos sabores, das fragâncias, da convivialidade e dos saberes. Esta como outras variedades de iguarias agrícolas, nas quais estes territórios ditos de interior são extraordinariamente ricos, deveriam ser preservados, estudados e alvo de melhoramento em projetos regionais que deveriam envolver produtores, autarquias, centros de investigação, instituições de ensino superior e o ministério da agricultura.
O uso da designação familiar acarreta em si uma responsabilidade acrescida pela força da palavra e todo o simbolismo que representa nos laços de confiança que permite criar. Mas para esta concretização há que creditar tecnicamente os seus produtores, conferindo capacidade e responsabilidade ao ato de produzir e desta forma, as relações de confiança e afetividade que podem fazer a diferença surgirão naturalmente. Têm que ser criados instrumentos de rastreabilidade e monitorização das atividades e práticas agrícolas que se vão implementando ao longo dos ciclos de produção. A estratégia de adoção das práticas da agricultura biológica, assente em princípios de equilíbrio e sustentabilidade do solo, das culturas, adequadas às épocas do ano e tendo por base uma comercialização em proximidade com redução da pegada do carbono, parece ser o melhor caminho para guindar este tipo de cultura ao sucesso que merece. Obviamente que todo este investimento tem que se traduzir na qualidade dos seus produtos não por calibres ou padronizações mas por sabores únicos que nos façam recuar às memórias de infância. As práticas agrícolas são uma das áreas onde mais se tem que apostar aliando o conhecimento empírico no combate às pragas e doenças às estratégias mais inovadoras creditadas cientificamente. O uso de fungicidas e bactericidas, de base natural, para a utilização em culturas agrícolas deve assumir-se como uma das grandes mais-valias de futuro, não numa lógica de “mezinha” mas em combinar de uma forma sinérgica as virtudes das plantas para a preservação do ecossistema com claro benefício para a saúde dos consumidores e dos nossos vindouros.
Nós como consumidores também temos a responsabilidade de procurarmos incentivar as relações de confiança com aqueles produtores de agricultura familiar que consideramos cumprirem os requisitos de qualidade, sustentabilidade, afetividade e proximidade. Sabermos ser exigentes mas dando tempo para que as relações de confiança se desenvolvam e maturem naturalmente. Se por um lado somos animais de hábitos e gostamos de comodidade, também nos cansamos cada vez mais depressa das rotinas e isso por vezes não facilita o estabelecimento de relações duradoiras, especialmente de índole afetiva. Aqui entram os prazeres proporcionados pela diversidade das iguarias que de acordo com a sazonalidade nos vão chegando pela mão daqueles em quem depositamos a confiança de alimentarem a nossa família. No meu caso a exigência é redobrada porque as minhas duas filhas são ambas nutricionistas e os Pais partilham o menu. Temos o privilégio da nossa agricultora familiar nos ir surpreendendo logo desde princípio com a chegada do cabaz semanal com uma composição de cores, formas e texturas dignas de um(a) pintor(a) naturalista à qual se aliam as inebriantes fragrâncias das ervas aromáticas que compõem o buquê. Havendo uma base comum estamos sempre ansiosos, semana após semana, em saber qual a fruta ou o legume que surge de novo porque estamos na sua época de eleição e não precisamos pedir porque ela já nos conhece os hábitos, mas acima de tudo sabe os trunfos que tem para nos surpreender todas as semanas ao longo do ano agrícola. Isto para além da confiança e laços de amizade que já damos por adquiridos mas que foram os promotores de toda esta partilha e convivência. Curioso é ser agora que estamos de férias, período em que escrevo estas linhas despretensiosas, mais sentimos a falta dos primores provindos da nossa Agricultora Familiar. Faço votos que este artigo possa ser o mote para que cada um encontre a sua alma gémea no seio da Agricultura familiar.
Bem-haja!

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