terça-feira, 28 de maio de 2024

Viseu, um Território, os seus Recursos e as suas Gentes


Viseu ergue-se no Centro de Portugal, como um anfiteatro rodeado por serras e cinzelado pelas bacias hidrográficas do Vouga e Mondego, assumindo a cidade, o concelho e o distrito uma localização de destaque no País, que se traduz na singular posição levocárdia e forma cordiforme que ostenta. Curiosa, é a similitude curvilínea do concelho no seu distrito, como uma ampliação refletida de um no outro, o que enaltece a vocação que o concelho deve ter para com a sua envolvente no projetar de um território para o mundo.

Sob a inspiração dos episódios mais recentes estou absolutamente convencido que Viseu-região pode vir a ter uma palavra de destaque neste novo ordenamento conjuntural, independentemente dos novos equilíbrios que se venham a estabelecer, no compromisso entre a preservação do ambiente e a valorização da economia, em prol da coesão social e territorial e na promoção de Portugal além fronteiras. Esta relação assemelha-se à interdependência de uma célula com o seu núcleo que, apesar de ser o elemento onde tudo é ditado, requer que todos os outros orquestrem em harmonia, para que a célula se assuma como a unidade básica morfológica e fisiológica de um organismo como um todo.

A paisagem é, na verdade, um sistema complexo que traduz a essência do território, permanentemente dinâmico, fruto de uma interação espacial e temporal entre o homem e o ambiente, combinando aspetos naturais e culturais que se influenciam simbioticamente ao longo do tempo e que expressam toda a biodiversidade, labor, engenho, inovação e criatividade. A compreensão da paisagem implica, assim, o conhecimento de fatores como a litologia, o relevo, os solos, a hidrografia, o clima, a flora e a fauna, a estrutura ecológica, o uso do solo e todas as expressões da atividade humana. A paisagem, à qual corresponde uma coerência nos processos e atividades naturais, históricas e culturais, é assim considerada o resultado visível da interação entre fatores abióticos, bióticos e humanos, que variam segundo o lugar e o tempo, e que contribuem para o genius loci. Esta combinação confere a cada paisagem um determinado carácter que está continuamente em evolução, mas é único para cada lugar, e tem um papel preponderante no estabelecimento e promoção da sua identidade, cujos traços e formas de expressão permitem reconstituir a sua génese e o seu papel funcional.


   

Figura – A identidade de uma paisagem baseia-se na sua modelação biofísica, no mosaico agro-silvo-pastoril da paisagem e nos padrões de uso e elementos culturais.

 

No mundo viajado que alcanço, considero o distrito de Viseu, com os seus 5 mil km², um dos raros exemplos onde, fruto de uma harmoniosa combinação de fatores naturais e condições humanas, se congregou um naipe de excelência ao nível dos recursos genéticos nas mais diversas áreas de produção agrícola, florestal e animal. Este património genético delineado por agricultores e pastores através de laboriosos e criativos processos de domesticação, traduz-se de forma natural numa panó
plia de iguarias gastronómicas “de fazer crescer água na boca”, que nos remetem com memória para a alma dos nossos egrégios avós. Na agricultura a diversidade de castas vinhateiras autóctones possibilitam a existência de regiões demarcadas tão diversas quanto próximas e algumas das variedades fruteiras ostentam honras de origem protegida. Nas raças pecuárias, a região é um solar dedicado aos ovinos, uma espécie com vocações múltiplas que incluem as produções leiteira, de carne e lanígera. Os privilégios eram conferidos pela fertilidade que disseminavam no movimento transumante, cuja prolificidade das raças revelam um hábil maneio e domesticação que fazem jus aos méritos do pastor Viriato. O leite produzido ao longo do alavão, de características ímpares na dispersão untuosa das micelas de caseína, é traduzido traduz-se num ícone cujo sabor e aroma ecoa como um ex-libris no mundo. O Queijo Serra da Estrela traduz a identidade e essência de um território que faz crescer cervunais, prados de gramíneas onde predomina o cervum (Nardus stricta), para repasto de raças estrela que se amplificam no maneio dos pastores e nas mãos das queijeiras. Na fauna piscícola dos rios apresenta-se um viveiro de espécies que já mereciam que estes territórios tivessem reconhecido o devido apreço a todo este potencial e que incluem as trutas, escalos, ruivacos, barbos, achigãs, bogas e enguias. Acredito que algum dos moinhos de água, tão característicos dos rios da região, poderia albergar um restaurante de excelência vocacionado para esta área gastronómica onde possamos escutar, simultaneamente, o som cristalino das águas no seu berço, enquanto apreciamos os sabores fluviais que requerem águas batidas e frescas.

O concelho de Viseu confina com dez outros concelhos adjacentes com características físicas muito distintas que vão desde Dão-Lafões, Terras de Azurara, às Terras do Demo e que condicionam de uma forma particular a identidade deste território. É limitado a norte pelos concelhos de São Pedro do Sul, Castro Daire e Vila Nova de Paiva, a este pelo Sátão e Penalva do Castelo, a sul por Mangualde, Nelas, Carregal do Sal e Tondela e a oeste por Vouzela. Apresenta-se em planalto, com altitudes entre 400 - 700 m, enquadrado por um conjunto de sistemas montanhosos, limitado a norte pelas serras de Leomil, Montemuro e Lapa, a noroeste pela serra da Arada, a sul e sudoeste pelas serras da Estrela e Lousã, e a oeste pela serra do Caramulo. São anfiteatros naturais deste quilate que permitem a criação de microclimas que tornam possível perscrutar árias inauditas.

Na diversidade dos cenários existentes neste território, que incluem Dão, Lafões e Alto Paiva, há uma identidade comum que define o carácter da Beira Alta, a presença constante dos povoamentos florestais com prevalência das cores verdes que durante todo o ano inundam as serras e as manchas agrícolas em mosaico de pequenas parcelas, onde se cultiva a vinha, o milho, os cereais de sequeiro, as árvores de fruto, as oliveiras e os mimos das hortas. Apesar destes traços comuns, não deixa de ser uma paisagem de contrastes entre os elevados e sólidos blocos rochosos a que correspondem as serranias com cumes mais áridos e as zonas mais baixas de encostas e vales agrícolas onde o clima é mais ameno e a terra fértil e húmida. A conservação do uso agrícola permite manter uma paisagem produtiva, aberta e equilibrada, cujo futuro dependerá das estratégias que forem seguidas para deter o abandono progressivo das terras e aldeias e a correspondente simplificação da paisagem, nomeadamente através de uma florestação maciça, com o risco acrescido na gestão dos incêndios que deflagram insistentemente e a espaços descontroladamente por estas regiões.

Nos vales, sistematicamente aproveitados para a produção agrícola e para o pastoreio de algum gado, as linhas de água são bordejadas em “passe-partout” por densas e frondosas galerias ripícolas compostas por amieiros, freixos e salgueiros. Estas espécies são matéria-prima para artesãos que moldam as suas madeiras, leves e resistentes, e forjam uma cestaria com recurso exclusivo a uma manualidade e criatividade empiricamente sabedoras. Os sabugueiros, cujas flores ornam de brancura e aroma as linhas de água, abrem perspetivas interessantes para a utilização na gastronomia regional, que já vimos ensaiando há algum tempo. Surgem ainda nas encostas manchas de mata que se insinuam entre as áreas agrícolas e que contribuem para a diversidade do mosaico que caracteriza esta paisagem, definindo zonas tampão, com um papel funcional de extrema importância no ordenamento e controlo de pragas e doenças fitossanitárias. Assim, os usos estão em geral bem-adaptados aos recursos presentes e a sua equilibrada diversidade indica uma efetiva sustentabilidade e capacidade multifuncional da paisagem. Nesta vasta unidade de paisagem encontramos uma subunidade, correspondente a uma parte do vale do Dão, onde se destaca a vinha, embora sempre rodeada de povoamentos florestais. Trata-se fundamentalmente de um planalto, com altitudes compreendidas entre 200 - 600 metros, com pendente no sentido sudoeste, constituído por uma sequência de colinas e rasgado pelos vales do Dão, Mondego e Alva. Existe no presente uma preocupação crescente com a preservação dos povoamentos florestais de pinhal através de um planeamento estratégico de uma rede de proteção e salvaguarda concebido pelos serviços técnicos competentes do ICNF. No concelho existiu ainda uma capacidade instalada de viveiros florestais de que, lamentavelmente, abdicamos com as limitações que daí advêm na falta de autonomia em podermos definir a biodiversidade e os recursos genéticos florestais que melhor se adaptam a um plano de ordenamento e plantação estratégica e funcionalmente indicado para o território.

Figura – Paisagem que a vista alcança sobre o concelho de Viseu desde o seu ponto mais elevado (Miradouro do Alto de S. Salvador, Cota).

 

Na sedimentação de camadas de informação que se traduzem na composição da paisagem, a matriz geológica desempenha um papel de relevo na disposição dos recursos. Na sua extensa maioria é composta por granitos que se assumem como rocha-mãe dominante, coroados por caos de blocos e pela dureza brilhante dos filões quartzíticos, cuja ação erosiva do tempo foi responsável pela formação dos relevos angulares que encimam algumas povoações com origem pré-romana. Os aglomerados mais atuais preferem a base dos outeiros atraídos pela fertilidade da torrente erosiva das águas. O processo de meteorização promove o negror dos solos desfeitos pela erosão do granito, afinados pelo biochar da giesta, da urze e da carqueja e o tempero dos currais, como diria o mestre Aquilino Ribeiro, conferem uma mineralidade característica, bem identificada em alguns dos primores agrícolas e gastronómicos do território, que se acende e resplandece na antecâmara do palato.

O padrão de uso do solo acompanha o deambular do relevo onde as cumeadas e as encostas mais declivosas com solos esqueléticos e afloramentos rochosos frequentes estão cobertas por matos, sobretudo de pinheiro bravo e eucalipto. Nas zonas mais planas e bonançosas a ocupação é predominantemente agrícola. O vale do Dão é, no geral, aberto com trechos cujas vertentes se debruçam em declive acentuado sobre o rio, e a agricultura, que se faz por gente heroica, é amenizada pelo som refrescante do correr da água. A densidade populacional é relativamente alta, apesar do predomínio das áreas florestais. Mesmo no interior das grandes manchas florestais surgem pequenos aglomerados com a orla envolvente de culturas agrícolas e pastagens. Estas clareiras, apesar de já terem sido muito mais significativas, constituem ainda um fator determinante na diversificação de uma paisagem, com uma vocação de sobrevivência e proteção de um estoicismo assinalável.

Os rios nesta geografia, à semelhança de um padrão de nervuras numa qualquer folha, assumem-se como outro dos elementos de vital importância para definir padrões de vida que se ajustam ao relevo e definem fertilidade num sistema confluente onde tudo desagua, denominado por bacia hidrográfica. Deste modo, assumem-se como um local privilegiado para auscultar e monitorizar a qualidade da paisagem, de que são exemplo o processo erosivo, agravado pelos incêndios, e os níveis de poluição que se traduzem na perda de qualidade da água e na limitação da biodiversidade. O concelho de Viseu é preenchido por duas bacias hidrográficas, a do Vouga a norte e a do Mondego a sul, sendo o rio Vouga e o rio Dão aqueles que definem os limites geográficos do concelho a norte e a sul, respetivamente. Existe ainda o rio Pavia que flui de modo tímido e constrangido pela polis, e onde raramente resplandece com o destaque que seria desejável.

O rio Dão parece ser um rio esquecido pela região, apenas lembrado pela designação que atribui à Região Demarcada Vitivinícola ou em situação de emergência, quando percebemos a sua sede sempre que se esvai pelas incidências do clima. Este é, naturalmente, um recurso de vital importância para a cidade e para a região que precisa ser reconhecido e potenciado por todo um conjunto de valências e sinergias. Estas não se enquadram apenas na conservação da biodiversidade e defesa dos valores ecológicos e de habitat de referência, mas pretendem criar e desenvolver projetos e dinâmicas, partilhados por instituições, associações e entidades que voltem a dar cor ao rio Dão cujo valor trespassa fronteiras concelhias.

Este concelho é ainda percorrido em profundidade por uma rede de águas termais, com um potencial assinalável que pode ajudar a gerar algumas sinergias no território, no âmbito da promoção da saúde e bem-estar, intimamente associada com as áreas da nutrição e gastronomia.

Figura – Cultura da vinha espelhada no rio Dão, um elemento raro que importa preservar e valorizar.


O concelho de Viseu, situado numa zona de transição, apresenta um conjunto de microclimas de vital importância para a criação e estabelecimento do mosaico agro-silvo-pastoril que o compõe. A serra do Caramulo, localizada a oeste, assume um papel de relevo em termos climáticos, ao atenuar as influências das massas de ar de oeste que podem advir pelo perfil da bacia do rio Mondego. Assim, o clima de Viseu caracteriza-se pela existência de elevadas amplitudes térmicas, com invernos rigorosos e húmidos e verões quentes e secos. Há características que se evidenciam em séries climáticas, às quais a agricultura e a própria sociedade se tem vindo a adaptar, onde incluímos as chuvas trovejadas de final de verão que desempenham um papel de enorme importância no culminar da maturação de certos ciclos produtivos ou nas instabilidades do mês de maio traduzidas em nevoeiros matinais e aguaceiros de trovoadas que por vezes precipitam o ano agrícola.

O concelho de Viseu limita a Norte a região Demarcada dos vinhos do Dão, sendo igualmente o concelho limite da região de Denominação de Origem da Maçã Bravo de Esmolfe e na sua vertente sul as freguesias de Fragosela, Povolide, São João de Lourosa e Loureiro de Silgueiros fazem-se incluir na região de Denominação de Origem Protegida do Queijo Serra da Estrela.

Figura – Os recursos genéticos animais e florísticos das pastagens que definem um cenário e determinam um ex-libris de excelência.

 Neste território-região são expoentes da produção agrícola a viticultura, a fruticultura, as ervas aromáticas e a horticultura, em larga medida em modo de produção biológica. Na produção animal destacam-se o borrego Serra da Estrela, o cabrito da Gralheira, a vitela Dão Lafões e onde fazendo alguns atropelos à taxonomia, mas sem ficar a dever à excelência, ainda podemos fazer incluir a truta do Paiva. Na área florestal pontificam o pinheiro bravo, o castanho e a castanha, a bolota e o carvalho, as mais variadas espécies de cogumelos silvestres, o mel, entre muitos outros recursos. Mais recentemente, surgiram os apelidados frutos vermelhos que, consideradas frutas dos bosques, revelam uma variação de tons que apelam à riqueza de antioxidantes, compostos tão requisitados na nutrição moderna na prevenção de fenómenos de oxidação privilegiando o antienvelhecimento e o combate a agentes mutagénicos e cancerígenos. Temos ainda recursos que irão surgir completamente de novo na região, muito por força das alterações climáticas, mas também pela capacidade de inovação, criatividade e engenho dos nossos produtores e outros recursos, ainda, que iremos recuperar da galeria doirada do reservatório genético destas paisagens, entre os quais o mostajo e as pútegas são apenas exemplos.

Nas avelãs, cuja cultura foi incentivada em tempos não muito distantes, existe uma variedade apelidada por “Grada de Viseu”. Hoje sabe-se, de modo cientificamente comprovado, que a “Grada de Viseu” é a “Fértil” Italiana. Que importa? Nada! Apenas que se adaptou tão bem aos nossos territórios e às nossas gentes que fazem dela uma grande avelã em qualquer lugar do mundo. Neste particular, a Estação Agrária de Viseu tem desenvolvido um trabalho notável de conservação e caracterização dos recursos genéticos das mais variadas iguarias agrícolas na quais as maçãs regionais, as avelãs, as castanhas e os frutos vermelhos são apenas parte do repositório. A fruticultura é um dos exemplos de relevo da região, com a criação de uma coleção de recursos genéticos de referência nacional, muito por força do labor e capacidade de uma equipa de técnicos e a quem têm de ser dadas condições para continuarem um trabalho começado, persistente, mas ainda não culminado. Apesar dos muitos estudos já realizados, ainda precisamos saber mais sobre as virtudes de todas estas “nossas” variedades, quer na área da nutracêutica, quer nas aplicações da saúde, bem como na avaliação da influência das alterações climáticas na produção e na qualidade dos seus frutos.

O Queijo Serra da Estrela, que se apresenta de corpo e alma como uma das nossas melhores referências gastronómicas, muito em particular nas épocas festivas que juntam as famílias na partilha de memórias, afetos, sentimentos e sabores, é um daqueles casos paradigmáticos de um recurso endógeno sempre adiado na capacidade de conquista do mundo. Apenas vos digo, afortunados aqueles que têm a possibilidade de vir à região escolher “o creme de la creme” no que a este ícone se refere, bem como do seu primo requeijão Serra da Estrela pincelado por doce de abóbora com nozes.

A cidade de Viseu teve o privilégio de ser pioneira no ensino agrícola em Portugal através da criação da Escola Prática de Agricultura de Viseu em 1852. A Escola Superior Agrária, do Instituto Politécnico de Viseu, surge como herdeira desse testemunho, mas precisa afirmar-se, de forma mais perentória, interagindo de modo mais efetivo com este território, diretamente com as empresas, municípios e associações de desenvolvimento rural, para que todos possam tirar partido na disseminação do conhecimento em prol da promoção e valorização dos territórios. Este território de eleição já merecia, pelo empenho técnico-científico de muitos, um grande centro de investigação que congregasse várias instituições públicas e privadas, vocacionado para os grandes pilares estratégicos dos sectores agrícola, florestal, alimentar, pecuário, nutricional, da promoção da saúde e bem-estar. Seria um verdadeiro exemplo pioneiro no País, numa região com o peso da tradição e o potencial de augúrio no futuro da agricultura e gastronomia.

A cidade de Viseu, apelidada com o epíteto de “cidade jardim”, apresenta um conjunto de espaços verdes de grande beleza e qualidade que, para além da função estética, desempenham um papel inestimável na preservação e valorização ambiental e ecológica do espaço urbano e concomitantemente na qualidade de vida das pessoas. No momento em que escrevo estas linhas o perfume das tílias espraia-se por entre a silhueta dos ramos e a sombra densa e simétrica das copas, cujo prateado se reflete no final da tarde quando as flores pendem e as suas folhas se retorcem.

Figura – As hortas são elementos arquitetados por jardineiros experimentados que combinam cores e matizes numa harmonia estética e funcional.

 

Uma “cidade jardim” faz-se de jardineiros, cujas hortas-jardim se assumem como o melhor testemunho da qualidade e mestria dos seus criadores. Combinam a disposição das espécies num mosaico de cores e matizes, que apelam à harmonia estética e funcional de todos os elementos, promovendo equilíbrio e sustentabilidade numa azulejaria viva, de design original, pincelada por uma flora e preservada por uma fauna auxiliar. A valorização dos recursos agrícolas autóctones e das práticas agrícolas ancestrais, especialmente no universo das hortícolas, é um património que deverá ser preservado procurando manter-se para memória futura. Esta identidade ajudará os pequenos produtores, que servem de base a uma agricultura familiar, a terem nichos de mercado baseados na ativação dos neurónios relacionados com o prazer dos sabores, das fragâncias, da convivialidade e dos saberes a todos aqueles que tiverem o privilégio de poder usufruir dos seus recursos.

Viseu, reconhecidamente um local de gastronomia de excelência, intitulada a “melhor cidade para Viver”, foi a primeira cidade portuguesa a ser objeto de um estudo de geografia urbana num trabalho meritório de Amorim Girão (1925). Um outro geógrafo de destaque, Orlando Ribeiro, em 1968 debruçou-se sobre Viseu, descrevendo a rua Direita, como sendo “porventura, a que melhor conserva, ao mesmo tempo, a fisionomia e as funções tradicionais que continua a desempenhar no contexto moderno da velha cidade”. Quero assim aproveitar o ensejo para prestar uma homenagem a um dos nossos maiores geógrafos, Orlando Ribeiro (1911-1997), referindo que, pela sua formação, conhecimento e pelas suas raízes seria o autor de eleição para fazer uma caracterização do território, dos recursos e das gentes de Viseu.

Há ainda um outro recurso que está diretamente ligado à mesa beirã que são as toalhas de linho, em cujo concelho existe um museu dedicado ao seu cultivo, produção e transformação, enaltecendo a arte e o labor de uma tradição que com a sua candura e simplicidade, embelezam e dão destaque aos mais diversos sabores do território.

A cidade de Viseu, não por acaso, é hoje estrategicamente um ponto de paragem obrigatória para quem percorre a E.N. 2. Este é um epíteto ao qual nos devemos associar pela essência do conceito na procura dos sabores autênticos e das tradições Portuguesas. Aliar a história imemorial destes territórios a todos os cenários de paisagens naturais, ao património arqueológico, e aos recursos endógenos aprimorados pela criação humana, permitem criar “historytellings” que nunca acabam, com a identidade exclusiva de um território talhado e aprimorado por estas gentes. O desafio maior é transportar para a gastronomia todos os aromas e sabores destas paisagens para que aqueles que nos visitem possam levar na memória os saberes e os cenários onde são criados.

Temos em Viseu diversas estruturas do setor agroalimentar que funcionam como “ourivesarias” do mundo rural na forma como enaltecem e valorizam os recursos agrícolas deste território e que têm ajudado a que a agricultura possa estar hoje, de uma forma naturalmente justa, em voga. Por isso, privilegiemos o consumo em “Km zero”, transmitindo um sentimento de confiança e reconhecimento pelo mérito dos nossos agricultores, acompanhando as tendências mais recentes das sociedades modernas.

Os menus de degustação, a par do extenso portefólio de recursos genéticos deste território, fizeram surgir sob o olhar nevado da serra, uma nova estrela, o chef Diogo Rocha. Em 2019, no qual se celebrizou o ano da gastronomia em Viseu, foi reconhecido como a estrela Michelin mais recente e a primeira da região ao qual todos desejamos que outros se venham juntar. Ambicionamos que esta seja uma região que acompanhe as tendências de futuro, também na gastronomia e no turismo, para distribuir retorno económico a toda esta fileira que começa no árduo e persistente trabalho agrícola, trespassa a inspiração dos sabores das nossas avós, preocupa-se com a atualidade do papel nutracêutico do alimento na preservação da saúde e bem-estar e culmina na arte de transpor os sabores da paisagem para a cozinha.

Bem-haja a todos aqueles que têm contribuído para a identidade e valorização deste território.

 Paulo Barracosa

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