ESAV-IPV desenvolve estudos sobre a planta do cardo
de vital importância na fileira do queijo da Serra da Estrela e
com potencial de aplicação em outras vertentes na região do Dão
Paulo
Barracosa Correia da Silva, professor da ESAV-IPV, do departamento de Ecologia
e Agricultura Sustentável, tem liderado diversos estudos sobre a planta do
Cardo. A Gazeta de Sátão, entrevistou-o a fim de conhecer melhor as
potencialidades desta planta.
Como surgiu o interesse no estudo desta planta?
Queria
começar por agradecer à “Gazeta de Sátão” a oportunidade de poder explicar um
pouco do percurso histórico do cardo na região e no mundo e, muito em
particular, falar um pouco dos estudos e projetos em que estamos envolvidos no
que ao cardo concerne. Considero que estas publicações com cariz de divulgação
técnica, numa ótica regional, são de extrema importância para informarmos e
sensibilizarmos as populações destes territórios a apostarem mais nos seus
recursos endógenos e procurarem desenvolvê-los com inovação, criatividade e
conhecimento técnico-científico, incutindo identidade mas respeitando sempre a
tradição e o legado dos seus antepassados. É uma atividade que faço e que tento
incutir aos meus alunos, porque nós temos que ser aqueles que melhor conhecemos
as nossas regiões, as nossas limitações, mais acima de tudo as nossas
capacidades e a nossa identidade que nos faz sermos reconhecidos no mundo pela
qualidade premium dos produtos que
emergem como ícones do coração destes nossos territórios e da alma das nossas
gentes. É desgostoso e criticável ver que as instituições de investigação
destas regiões e de outras afetadas pelos fogos, por exemplo, não sejam
chamadas a colaborar com as ditas ilustres universidades nos tais famosos
relatórios. Pouparíamos recursos e ganhávamos agilidade de processos. No fundo
ganhávamos todos! Arrisco a dizer que se consideram que não temos qualidade
técnica e científica para ajudar então sou o primeiro a admitir que devamos
fechar portas, sendo que a investigação científica é apenas uma parte do papel
que os Institutos Politécnicos desempenham cabalmente nestas regiões. O
interesse particular pelo estudo do cardo surgiu por, há 7 anos, ter verificado
que ninguém estaria a estudar esta planta na região, depois da então DRABL, no
Tojal Mau, e a Ancose, em Oliveira do Hospital, terem desenvolvido alguns
estudos meritórios que era necessário aprofundar quer sob ponto de vista do
conhecimento de produção agrícola, quer bioquímico na aplicação como agente
coagulante do queijo Serra da Estrela.
Como poderemos definir o Cardo em termos
botânicos?
O cardo é uma planta que pertence à família das Asteráceas
(Compostas) que é uma das famílias com mais espécies de plantas e por isso revelam
uma extensa biodiversidade, onde se incluem diversas plantas desde as
infestantes comuns a plantas com elevado interesse agrícola como é exemplo o
girassol, entre muitas outras. O cardo inclui-se no género Cynara que é um grupo restrito composto por oito espécies entre as
quais em Portugal encontramos três, designadamente a Cynara cardunculus, C.
humilis e a C. algarbiensis. Em
termos de distribuição geográfica o género Cynara
apresentam uma distribuição ao longo da orla mediterrânica podendo-se estender
pelo médio oriente, embora hoje se encontre disperso um pouco por todo o mundo.
A espécie C. cardunculus tem a
particularidade de ter sofrido dois processos de domesticação com objetivos
distintos que conduziram ao estabelecimento da alcachofra (C. cardunculus var. scolymus) mais vocacionada para a produção de
capítulos para serem consumidos em fresco e do cardo cultivado (C. cardunculus var altilis) com o
objetivo de produção de biomassa. A alcachofra é atualmente um dos vegetais de
referência no mundo desenvolvido como um excelente promotor de saúde pela
qualidade dos seus polifenóis e flavonoides como compostos bioativos. O cardo
para biomassa é uma ótima opção para áreas mediterrânicas com graves problemas
de défice hídrico e erosão dos solos que tenderão a agravar esta tendência no
futuro. Apesar da principal aplicação das flores de cardo como coalho vegetal,
nunca foi desenvolvido um processo de seleção e melhoramento que tivesse como
objetivo a produção de flor com características bioquímicas para a produção de
queijos de excelência com padrões e texturas diversas e que simultaneamente
pudesse ser usada a sua biomassa nas mais variadas aplicações e vocações. É
este trabalho que vimos desenvolvendo na ESAV há cerca de 5 anos com um vasto
grupo de investigadores e instituições de referência nacional e mundial e na
qual os meus alunos e alguns colegas são parte integrante e efetiva deste processo
extraordinariamente complexo.
Quando falamos do cardo associamos
a sua flor à produção do queijo da Serra da Estrela, produto endógeno da região
com Denominação de Origem Protegida. Qual o verdadeiro papel no seu fabrico?
A flor de cardo consta, no atual caderno de especificações do
queijo DOP “Serra da Estrela” (QSE), como um dos ingredientes obrigatórios a usar
a par do leite de ovelhas das raças “Serra da Estrela” e “Churra Mondegueira” e
do sal. O motivo desta utilização, desde tempos remotos, prende-se com a
elevada concentração de enzimas proteolíticas, designadas cardosinas, que atuam
na proteólise das diferentes caseínas do leite e na formação das micelas que
transformam o leite na famosa coalhada que será a base da criação do queijo
pelas mãos sábias das queijeira(o)s, após um longo processo de maturação de 45
dias no mínimo. Atualmente, fruto da sua diversidade bioquímica, a flor de
cardo assume-se como um dos agentes coagulantes de queijo afamados e exclusivos
com características muito particulares, como sejam uma textura amanteigada e um
leve amargor, que correspondem a compostos bioativos com potencial interesse
como promotores de saúde para além do sabor exclusivo e identitário. Estas
características fazem com que hoje sejamos muito solicitados também fora da
região da Serra da Estrela por afamadas queijarias em Portugal e no mundo que
não são obrigadas a usarem a flor de cardo mas que a preferem dadas as
características particulares que conferem aos queijos. Estamos atualmente com
várias linhas de investigação com diversos parceiros, a tentar provarmos que os
queijos laborados com flor de cardo possuem um teor de antioxidantes que podem
atuar como excelentes promotores de saúde, por via da utilização exclusiva da
flor como agente coagulante. Hoje há na região um número maior de queijarias
que dá atenção à qualidade da flor de cardo e eu posso garantir que nesta
região se produz a melhor flor de cardo do Mundo em instituições de índole
social como a APPACDM e o Estabelecimento prisional do Campo que são disso uma
evidência. Como resultado deste trabalho conseguimos que queijarias como a
“Casa da Insua” que no passado adquiriam flores ao Alentejo sejam hoje
autossuficientes na produção de flor para o seu fabrico, fruto do grande
empenho do seu responsável agrícola, Eng. José Matias, que foi dos poucos que
acreditou no projeto desde a primeira hora. Outras queijarias existiam que já
produziam a sua flor como a queijaria de Germil e Sabores e Ambientes e que
temos vindo a procurar ajudar na seleção das melhores flores. Entretanto temos
sido solicitados por outras queijarias que vamos procurando dar resposta no
sentido de podermos ajudar mais a região a tornar-se autossuficiente na flor de
cardo para produção do QSE que era um dos objetivos a concretizar no âmbito do
projeto.
Esta planta que é vista por muitos
agricultores como infestante, no entanto poderá ter várias utilizações?
Eu
tenho trabalhado ao longo do meu percurso profissional, desde a Universidade do
Algarve, na promoção e valorização de diversas espécies de plantas das mais
variadas origens geográficas por onde tenho passado e posso afirmar que poucas
plantas apresentam uma multifuncionalidade tão extensa como é o caso do cardo.
O cardo é uma planta que se dá toda! A raiz é extraordinariamente rica em
inulina à semelhança de outras plantas; os caules têm características físicas e
mecânicas extraordinárias que conferem uma leveza e resistência notáveis e que
estão atualmente a ser avaliadas no Departamento das madeiras da ESTGV-IPV para
utilizações de futuro; as folhas possuem compostos bioativos com funções
antioxidantes, antibacterianos, antifúngicos e anticancerígenos, entre outros;
as sementes são ricas em óleo com aplicação alimentar ou biodiesel, isto tudo
para além da flor cuja aplicação está garantida no fabrico de queijos de
elevada qualidade embora possa ter muitas outras aplicações nas áreas da
cosmética, farmacêutica entre outras. Por exemplo, muitos dos leitores já terão
certamente tomado uma infusão de cardo-mariano (Silybum marianum) para proteção do fígado, redução do colesterol
entre muitas outras funções. Saibam que as folhas do “nosso” cardo têm as
mesmas propriedades e podem ser tomadas para os mesmos fins.
A ESAV tem
feito vários estudos / projetos sobre esta planta, desde o CARDOP e o QCLASSE.
Quais os objetivos e os resultados conseguidos?
Os
estudos sobre o cardo que temos vindo a desenvolver tiveram início em 2011 com
um projeto PRODER, intitulado CARDOP, que pretendeu caracterizar a
biodiversidade morfológica e bioquímica do cardo existente na região demarcada
do QSE e que na altura tivemos um orçamento de cerca de 17,000 euros para um
período de 5 anos que correspondeu ao valor do IVA (23%) que tínhamos
solicitado inicialmente na candidatura. Apenas refiro este pormenor para
percebermos a aposta inicial que foi efetuada pelas instituições de apoio
estatais nesta cultura e nesta equipa e que se traduziu num significativo
número de publicações e conferências um pouco por todo o mundo a última das
quais no passado mês de novembro numa revista de impacto mundial. O nosso
grande mérito foi, na altura, não termos desistido e investido muito do nosso
tempo e dos nossos recursos financeiros pessoais por acreditarmos neste
conceito para esta região e que poderia ser um modelo transposto para outras
realidades, inclusivamente em Espanha. Com isso conseguimos envolver um
conjunto de outros parceiros no País e na região e hoje existem alguns projetos
em curso a nível nacional com verbas muito significativas e que permitirão
chegar a muitos dos objetivos a que nos propusemos inicialmente mas que por
manifesta falta de apoio não logramos ainda atingir. Contudo, conseguimos
colocar o cardo na ordem do dia e fazer ver, em particular na região, que esta
cultura se poderia constituir como um recurso endógeno de referência.
Estabelecemos diversos campos de recursos genéticos em queijarias de referência,
como a Casa da Ínsua, em Unidades de Investigação como a ESAV e em outras de
índole social como o estabelecimento prisional do campo (Viseu) e a APPACDM. O
projeto QCLASSE surgiu, muito recentemente, com o objetivo de valorizar o
Queijo DOP Serra da Estrela sob ponto de vista nutricional e promotor de saúde
ao nível dos perfis de péptidos e ácidos gordos, cujos resultados, a breve
trecho, começarão a vir a público.
Tem feitos
outros, quais?
Atualmente
estão em curso com o cardo diversos projetos de índole variada que se torna
difícil enumerar mas que, no essencial, estamos a procurar valorizar as
diferentes forma de biomassa que podem ser obtidas e criar sinergias entre os
vários projetos que envolvem parceiros não apenas ligados às questões agro-alimentares,
mas também nas áreas da medicina, farmacêutica, madeiras, ambiente e mecânica.
Temos sido também consultores e colaboramos em estudos que estão a ser
desenvolvidos em outras áreas de Queijos DOP em Portugal e em Cáceres
(Espanha), onde é produzido o queijo “Torta del Casar” e na Irlanda com queijo
“Mozzarella”.
O
projeto Cynatura, que, foi galardoado com um prémio de empreendedorismo e uma
menção honrosa, desenvolve e cria soluções inovadoras com assinatura no cardo,
através do conhecimento técnico-científico multidisciplinar numa espécie com
vocações e aplicações múltiplas que, ao promover a valorização nutricional e
alimentar, a saúde e bem-estar, a sustentabilidade ambiental e a integração
social pode afirmar-se como uma cultura de futuro para muitas das regiões do
nosso território.
Numa
outra vertente o projeto Cyn.stress pretende avaliar o efeito do stresse
hídrico em plantas de genótipos selecionados que apresentam morfologias e
perfis bioquímicos de cardosinas exclusivos. Estas plantas estão sujeitas a
diferentes regimes hídricos para avaliarmos a resposta das plantas ao nível das
caraterísticas morfológicas, bioquímicas e moleculares atendendo às perspetivas
futuras relativamente às alterações climáticas.
Neste
caso, como em muitos outros exemplos, é a produção agrícola que suporta toda a
pirâmide de valorização da produção e transformação. Produzir com uma qualidade
diferenciada de forma eficiente e sustentável perspetivando as alterações
climáticas são requisitos obrigatórios para o sucesso na agricultura de futuro.
Para concretizarmos este desígnio temos que produzir com menos recursos e
meios, ter menos desperdícios e retirar mais dividendos económicos pela
aplicação especializada dos mais diversos compostos bioativos existentes nos diversos
componentes da biomassa vegetal designadamente na raiz, caule, folha, capitulo,
flor e semente. A seleção, caracterização e melhoramento dos recursos genéticos
permitem a criação das melhores características e arquiteturas para a planta
tendo como objetivo as suas vocações mais específicas.
Qual a importância desta planta
para as outras culturas da região como a vinha entre outras?
Nos
últimos dois anos temos vindo a desenvolver ensaios relativos ao projeto
CYN.DÃO que pretende avaliar o efeito de extratos de cardo como opção a incluir
no modo de produção biológica para proteção da cultura da vinha em castas
típicas da região do Dão (Vitis vinifera
L. var. Touriga-Nacional) que, em
função do sucesso dos resultados, pode ser testada em outras culturas. Os
resultados preliminares obtidos permitem avaliar de uma forma extremamente
positiva o efeito da aplicação de um extrato de cardo na proteção da vinha face
a pragas e doenças, bem como na produção da qualidade de uva produzida e por
último do vinho. Estes estudos e ensaios em campo e laboratoriais têm que ser
continuados para podermos atingir o objetivo de podermos vir a certificar este
extrato como meio de proteção de plantas, essencialmente no combate ao míldio e
oídio em modo de produção biológica. Neste momento temos um lote de vinho
obtido no âmbito do projeto em estágio que, na devida altura, será alvo de uma
prova e apresentadas as estruturas que estão envolvidas neste projeto nas áreas
da viticultura e enologia.
Projetos para o futuro. Tem alguns
trabalhos em mente? Quais?
Como
será fácil perceber não faltarão ideias para o futuro apesar da multiplicidade
de áreas já abordadas, embora existam prioridades claras designadamente na área
da produção agrícola atendendo às tendências futuras das alterações no clima.
Estamos igualmente atentos às tendências de consumo e padrões alimentares e
nutricionais que possamos vir a explorar com o cardo com a criação de novos
produtos desde bombons, cerveja, pickles, doce, etc. As questões relativas à
preservação ambiental e sustentabilidade de produção e preservação de solos e
da paisagem são igualmente determinantes para o sucesso da cultura atendendo ao
papel crucial que o mosaico agrícola terá no futuro da paisagem para redução do
risco de incêndio. Os meus alunos são igualmente uma grande fonte de inspiração
e queria deixar este estímulo de incentivo e agradecimento público porque ainda
este mês eles permitiram que recebêssemos mais um prémio de empreendedorismo
com o projeto “Cynarvest” com o desenvolvimento de um equipamento para colheita
mecanizada de flor e que juntou alunos de diversas escolas do IPV que era um
sonho que alimentava há muito. O próximo pode vir com colaborações com alunos
Erasmus que nos tragam uma nova forma de ver as coisas e já agora levarem de
volta algo de que se possam orgulhar, a eles e a nós. Um enorme bem-haja!
Paulo Barracosa
pbarracosa@esav.ipv.pt
Sem comentários:
Enviar um comentário