terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Acabamos o Ano de 2017 a fazer Gazeta...de Sátão






ESAV-IPV desenvolve estudos sobre a planta do cardo
de vital importância na fileira do queijo da Serra da Estrela e com potencial de aplicação em outras vertentes na região do Dão

                Paulo Barracosa Correia da Silva, professor da ESAV-IPV, do departamento de Ecologia e Agricultura Sustentável, tem liderado diversos estudos sobre a planta do Cardo. A Gazeta de Sátão, entrevistou-o a fim de conhecer melhor as potencialidades desta planta.
Como surgiu o interesse no estudo desta planta?
Queria começar por agradecer à “Gazeta de Sátão” a oportunidade de poder explicar um pouco do percurso histórico do cardo na região e no mundo e, muito em particular, falar um pouco dos estudos e projetos em que estamos envolvidos no que ao cardo concerne. Considero que estas publicações com cariz de divulgação técnica, numa ótica regional, são de extrema importância para informarmos e sensibilizarmos as populações destes territórios a apostarem mais nos seus recursos endógenos e procurarem desenvolvê-los com inovação, criatividade e conhecimento técnico-científico, incutindo identidade mas respeitando sempre a tradição e o legado dos seus antepassados. É uma atividade que faço e que tento incutir aos meus alunos, porque nós temos que ser aqueles que melhor conhecemos as nossas regiões, as nossas limitações, mais acima de tudo as nossas capacidades e a nossa identidade que nos faz sermos reconhecidos no mundo pela qualidade premium dos produtos que emergem como ícones do coração destes nossos territórios e da alma das nossas gentes. É desgostoso e criticável ver que as instituições de investigação destas regiões e de outras afetadas pelos fogos, por exemplo, não sejam chamadas a colaborar com as ditas ilustres universidades nos tais famosos relatórios. Pouparíamos recursos e ganhávamos agilidade de processos. No fundo ganhávamos todos! Arrisco a dizer que se consideram que não temos qualidade técnica e científica para ajudar então sou o primeiro a admitir que devamos fechar portas, sendo que a investigação científica é apenas uma parte do papel que os Institutos Politécnicos desempenham cabalmente nestas regiões. O interesse particular pelo estudo do cardo surgiu por, há 7 anos, ter verificado que ninguém estaria a estudar esta planta na região, depois da então DRABL, no Tojal Mau, e a Ancose, em Oliveira do Hospital, terem desenvolvido alguns estudos meritórios que era necessário aprofundar quer sob ponto de vista do conhecimento de produção agrícola, quer bioquímico na aplicação como agente coagulante do queijo Serra da Estrela.
                Como poderemos definir o Cardo em termos botânicos?
O cardo é uma planta que pertence à família das Asteráceas (Compostas) que é uma das famílias com mais espécies de plantas e por isso revelam uma extensa biodiversidade, onde se incluem diversas plantas desde as infestantes comuns a plantas com elevado interesse agrícola como é exemplo o girassol, entre muitas outras. O cardo inclui-se no género Cynara que é um grupo restrito composto por oito espécies entre as quais em Portugal encontramos três, designadamente a Cynara cardunculus, C. humilis e a C. algarbiensis. Em termos de distribuição geográfica o género Cynara apresentam uma distribuição ao longo da orla mediterrânica podendo-se estender pelo médio oriente, embora hoje se encontre disperso um pouco por todo o mundo. A espécie C. cardunculus tem a particularidade de ter sofrido dois processos de domesticação com objetivos distintos que conduziram ao estabelecimento da alcachofra (C. cardunculus var. scolymus) mais vocacionada para a produção de capítulos para serem consumidos em fresco e do cardo cultivado (C. cardunculus var altilis) com o objetivo de produção de biomassa. A alcachofra é atualmente um dos vegetais de referência no mundo desenvolvido como um excelente promotor de saúde pela qualidade dos seus polifenóis e flavonoides como compostos bioativos. O cardo para biomassa é uma ótima opção para áreas mediterrânicas com graves problemas de défice hídrico e erosão dos solos que tenderão a agravar esta tendência no futuro. Apesar da principal aplicação das flores de cardo como coalho vegetal, nunca foi desenvolvido um processo de seleção e melhoramento que tivesse como objetivo a produção de flor com características bioquímicas para a produção de queijos de excelência com padrões e texturas diversas e que simultaneamente pudesse ser usada a sua biomassa nas mais variadas aplicações e vocações. É este trabalho que vimos desenvolvendo na ESAV há cerca de 5 anos com um vasto grupo de investigadores e instituições de referência nacional e mundial e na qual os meus alunos e alguns colegas são parte integrante e efetiva deste processo extraordinariamente complexo.
Quando falamos do cardo associamos a sua flor à produção do queijo da Serra da Estrela, produto endógeno da região com Denominação de Origem Protegida. Qual o verdadeiro papel no seu fabrico?
A flor de cardo consta, no atual caderno de especificações do queijo DOP “Serra da Estrela” (QSE), como um dos ingredientes obrigatórios a usar a par do leite de ovelhas das raças “Serra da Estrela” e “Churra Mondegueira” e do sal. O motivo desta utilização, desde tempos remotos, prende-se com a elevada concentração de enzimas proteolíticas, designadas cardosinas, que atuam na proteólise das diferentes caseínas do leite e na formação das micelas que transformam o leite na famosa coalhada que será a base da criação do queijo pelas mãos sábias das queijeira(o)s, após um longo processo de maturação de 45 dias no mínimo. Atualmente, fruto da sua diversidade bioquímica, a flor de cardo assume-se como um dos agentes coagulantes de queijo afamados e exclusivos com características muito particulares, como sejam uma textura amanteigada e um leve amargor, que correspondem a compostos bioativos com potencial interesse como promotores de saúde para além do sabor exclusivo e identitário. Estas características fazem com que hoje sejamos muito solicitados também fora da região da Serra da Estrela por afamadas queijarias em Portugal e no mundo que não são obrigadas a usarem a flor de cardo mas que a preferem dadas as características particulares que conferem aos queijos. Estamos atualmente com várias linhas de investigação com diversos parceiros, a tentar provarmos que os queijos laborados com flor de cardo possuem um teor de antioxidantes que podem atuar como excelentes promotores de saúde, por via da utilização exclusiva da flor como agente coagulante. Hoje há na região um número maior de queijarias que dá atenção à qualidade da flor de cardo e eu posso garantir que nesta região se produz a melhor flor de cardo do Mundo em instituições de índole social como a APPACDM e o Estabelecimento prisional do Campo que são disso uma evidência. Como resultado deste trabalho conseguimos que queijarias como a “Casa da Insua” que no passado adquiriam flores ao Alentejo sejam hoje autossuficientes na produção de flor para o seu fabrico, fruto do grande empenho do seu responsável agrícola, Eng. José Matias, que foi dos poucos que acreditou no projeto desde a primeira hora. Outras queijarias existiam que já produziam a sua flor como a queijaria de Germil e Sabores e Ambientes e que temos vindo a procurar ajudar na seleção das melhores flores. Entretanto temos sido solicitados por outras queijarias que vamos procurando dar resposta no sentido de podermos ajudar mais a região a tornar-se autossuficiente na flor de cardo para produção do QSE que era um dos objetivos a concretizar no âmbito do projeto.
Esta planta que é vista por muitos agricultores como infestante, no entanto poderá ter várias utilizações?
Eu tenho trabalhado ao longo do meu percurso profissional, desde a Universidade do Algarve, na promoção e valorização de diversas espécies de plantas das mais variadas origens geográficas por onde tenho passado e posso afirmar que poucas plantas apresentam uma multifuncionalidade tão extensa como é o caso do cardo. O cardo é uma planta que se dá toda! A raiz é extraordinariamente rica em inulina à semelhança de outras plantas; os caules têm características físicas e mecânicas extraordinárias que conferem uma leveza e resistência notáveis e que estão atualmente a ser avaliadas no Departamento das madeiras da ESTGV-IPV para utilizações de futuro; as folhas possuem compostos bioativos com funções antioxidantes, antibacterianos, antifúngicos e anticancerígenos, entre outros; as sementes são ricas em óleo com aplicação alimentar ou biodiesel, isto tudo para além da flor cuja aplicação está garantida no fabrico de queijos de elevada qualidade embora possa ter muitas outras aplicações nas áreas da cosmética, farmacêutica entre outras. Por exemplo, muitos dos leitores já terão certamente tomado uma infusão de cardo-mariano (Silybum marianum) para proteção do fígado, redução do colesterol entre muitas outras funções. Saibam que as folhas do “nosso” cardo têm as mesmas propriedades e podem ser tomadas para os mesmos fins.
                A ESAV tem feito vários estudos / projetos sobre esta planta, desde o CARDOP e o QCLASSE. Quais os objetivos e os resultados conseguidos?
Os estudos sobre o cardo que temos vindo a desenvolver tiveram início em 2011 com um projeto PRODER, intitulado CARDOP, que pretendeu caracterizar a biodiversidade morfológica e bioquímica do cardo existente na região demarcada do QSE e que na altura tivemos um orçamento de cerca de 17,000 euros para um período de 5 anos que correspondeu ao valor do IVA (23%) que tínhamos solicitado inicialmente na candidatura. Apenas refiro este pormenor para percebermos a aposta inicial que foi efetuada pelas instituições de apoio estatais nesta cultura e nesta equipa e que se traduziu num significativo número de publicações e conferências um pouco por todo o mundo a última das quais no passado mês de novembro numa revista de impacto mundial. O nosso grande mérito foi, na altura, não termos desistido e investido muito do nosso tempo e dos nossos recursos financeiros pessoais por acreditarmos neste conceito para esta região e que poderia ser um modelo transposto para outras realidades, inclusivamente em Espanha. Com isso conseguimos envolver um conjunto de outros parceiros no País e na região e hoje existem alguns projetos em curso a nível nacional com verbas muito significativas e que permitirão chegar a muitos dos objetivos a que nos propusemos inicialmente mas que por manifesta falta de apoio não logramos ainda atingir. Contudo, conseguimos colocar o cardo na ordem do dia e fazer ver, em particular na região, que esta cultura se poderia constituir como um recurso endógeno de referência. Estabelecemos diversos campos de recursos genéticos em queijarias de referência, como a Casa da Ínsua, em Unidades de Investigação como a ESAV e em outras de índole social como o estabelecimento prisional do campo (Viseu) e a APPACDM. O projeto QCLASSE surgiu, muito recentemente, com o objetivo de valorizar o Queijo DOP Serra da Estrela sob ponto de vista nutricional e promotor de saúde ao nível dos perfis de péptidos e ácidos gordos, cujos resultados, a breve trecho, começarão a vir a público.
                Tem feitos outros, quais?
Atualmente estão em curso com o cardo diversos projetos de índole variada que se torna difícil enumerar mas que, no essencial, estamos a procurar valorizar as diferentes forma de biomassa que podem ser obtidas e criar sinergias entre os vários projetos que envolvem parceiros não apenas ligados às questões agro-alimentares, mas também nas áreas da medicina, farmacêutica, madeiras, ambiente e mecânica. Temos sido também consultores e colaboramos em estudos que estão a ser desenvolvidos em outras áreas de Queijos DOP em Portugal e em Cáceres (Espanha), onde é produzido o queijo “Torta del Casar” e na Irlanda com queijo “Mozzarella”.
O projeto Cynatura, que, foi galardoado com um prémio de empreendedorismo e uma menção honrosa, desenvolve e cria soluções inovadoras com assinatura no cardo, através do conhecimento técnico-científico multidisciplinar numa espécie com vocações e aplicações múltiplas que, ao promover a valorização nutricional e alimentar, a saúde e bem-estar, a sustentabilidade ambiental e a integração social pode afirmar-se como uma cultura de futuro para muitas das regiões do nosso território.
Numa outra vertente o projeto Cyn.stress pretende avaliar o efeito do stresse hídrico em plantas de genótipos selecionados que apresentam morfologias e perfis bioquímicos de cardosinas exclusivos. Estas plantas estão sujeitas a diferentes regimes hídricos para avaliarmos a resposta das plantas ao nível das caraterísticas morfológicas, bioquímicas e moleculares atendendo às perspetivas futuras relativamente às alterações climáticas.
Neste caso, como em muitos outros exemplos, é a produção agrícola que suporta toda a pirâmide de valorização da produção e transformação. Produzir com uma qualidade diferenciada de forma eficiente e sustentável perspetivando as alterações climáticas são requisitos obrigatórios para o sucesso na agricultura de futuro. Para concretizarmos este desígnio temos que produzir com menos recursos e meios, ter menos desperdícios e retirar mais dividendos económicos pela aplicação especializada dos mais diversos compostos bioativos existentes nos diversos componentes da biomassa vegetal designadamente na raiz, caule, folha, capitulo, flor e semente. A seleção, caracterização e melhoramento dos recursos genéticos permitem a criação das melhores características e arquiteturas para a planta tendo como objetivo as suas vocações mais específicas.
                Qual a importância desta planta para as outras culturas da região como a vinha entre outras?
Nos últimos dois anos temos vindo a desenvolver ensaios relativos ao projeto CYN.DÃO que pretende avaliar o efeito de extratos de cardo como opção a incluir no modo de produção biológica para proteção da cultura da vinha em castas típicas da região do Dão (Vitis vinifera L. var. Touriga-Nacional) que, em função do sucesso dos resultados, pode ser testada em outras culturas. Os resultados preliminares obtidos permitem avaliar de uma forma extremamente positiva o efeito da aplicação de um extrato de cardo na proteção da vinha face a pragas e doenças, bem como na produção da qualidade de uva produzida e por último do vinho. Estes estudos e ensaios em campo e laboratoriais têm que ser continuados para podermos atingir o objetivo de podermos vir a certificar este extrato como meio de proteção de plantas, essencialmente no combate ao míldio e oídio em modo de produção biológica. Neste momento temos um lote de vinho obtido no âmbito do projeto em estágio que, na devida altura, será alvo de uma prova e apresentadas as estruturas que estão envolvidas neste projeto nas áreas da viticultura e enologia.
                Projetos para o futuro. Tem alguns trabalhos em mente? Quais?
Como será fácil perceber não faltarão ideias para o futuro apesar da multiplicidade de áreas já abordadas, embora existam prioridades claras designadamente na área da produção agrícola atendendo às tendências futuras das alterações no clima. Estamos igualmente atentos às tendências de consumo e padrões alimentares e nutricionais que possamos vir a explorar com o cardo com a criação de novos produtos desde bombons, cerveja, pickles, doce, etc. As questões relativas à preservação ambiental e sustentabilidade de produção e preservação de solos e da paisagem são igualmente determinantes para o sucesso da cultura atendendo ao papel crucial que o mosaico agrícola terá no futuro da paisagem para redução do risco de incêndio. Os meus alunos são igualmente uma grande fonte de inspiração e queria deixar este estímulo de incentivo e agradecimento público porque ainda este mês eles permitiram que recebêssemos mais um prémio de empreendedorismo com o projeto “Cynarvest” com o desenvolvimento de um equipamento para colheita mecanizada de flor e que juntou alunos de diversas escolas do IPV que era um sonho que alimentava há muito. O próximo pode vir com colaborações com alunos Erasmus que nos tragam uma nova forma de ver as coisas e já agora levarem de volta algo de que se possam orgulhar, a eles e a nós. Um enorme bem-haja!

Paulo Barracosa

pbarracosa@esav.ipv.pt

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